Bollas e a Psicanálise da Estética
Resenha de "A Metapsicologia de Christopher Bollas" (Sarah Nettleton, Escuta: 2019, 151p.)
“É raro o psicanalista sentir-se inclinado a investigações estéticas”, escreve Freud nas primeiras linhas de seu obscuro “O inquietante” (Freud, 1919/2010). Conhecesse ele a obra de Christopher Bollas ficaria surpreso quanto às contribuições de se ater à forma por traz do conteúdo.
A extensa obra desse psicanalista americano radicado em Londres é coalhada de referências à arte, à literatura, à música. Para ele, a criatividade artística/estética em si é coincidente com o pensamento inconsciente (que forma o sonho).
Em “A Metapsicologia de Christopher Bollas”, publicado pela Escuta, a autora Sarah Nettleton, psicanalista inglesa, ex-supervisionanda e editora dos livros mais recentes de Bollas, nos leva por um aprofundamento agudo e penetrante em sua obra. Não é uma leitura extensa e detalhada mas uma digestão organizada do que é fundamental na experiência clínica e percepções bollasianas; o foco de Sarah parece ser instrumentalizar o leitor na navegação por uma metapsicologia plural, que parte de Freud e deixa-se influenciar por Winnicott, Bion, Lacan, mas que também os perpassa e até os abandona em favor de uma atenção redobrada à estética do self. Na leitura de Sarah, Bollas nos ensina que a estrutura tripartite não permite pensar em todas as nossas negociações internas.
A autora destaca como fundante da obra o inconsciente receptivo bollasiano. Bollas escreve que, como se tivesse criado o telescópio, Freud ficou mais interessado nas descobertas que poderia fazer com seu novo dispositivo — a associação livre — do que no dispositivo em si. A associação livre é filha direta da interpretação do sonho e da investigação de como o inconsciente funciona. Bollas se concentra nessa parte da descoberta freudiana, dando destaque à inteligência inconsciente que perscruta o mundo em busca de objetos que possam ser usado como restos diurnos para a formação de comunicação através dos sonhos. Essa capacidade é o inconsciente receptivo, que convive ao lado do inconsciente recalcado mas que, inversamente a este e numa mão dupla, age como uma força atrativa dos objetos do mundo com os quais a estética de cada sujeito pode se identificar. Profundamente alicerçado na clínica (seus livros são cheios de vinhetas), Bollas nos convoca a pensar as escolhas de objetos não apenas como identificações projetivas, mas também como identificações perceptivas, ou seja, a capacidade do self de ser afetado pelos objetos, não de um ego que projeta elementos internos nos objetos de fora.
Numa ampliação da aposta de Winnicott de que a mente tende à saúde, Bollas pensa nas genera como pares opostos aos traumas. Estes recolheriam no mundo objetos tanáticos para aumentar o núcleo traumático; as genera recolheriam, por sua vez, objetos invocativos ou conservativos (ambas expressões do autor, destrinchadas por Nettleton) que servem para que o self se desdobre, apareça no mundo interno e externo.
Na leitura de Sarah, a aposta num self robusto é o que mais distingue Bollas de Winnicott. Enquanto este último ligava o self ao id, frágil e protegido pelo falso self adaptado, Bollas pensa no self ligado ao ego, mais poderoso e mais insistente que o self winnicottiano. O self é a sede do que Bollas chama idioma, a impressão digital única com a qual nascemos (fingerprint) e que quer se desdobrar, do berço ao túmulo.
Sarah mostra em detalhes como, para o autor, esse “design único” de cada sujeito enlaça a libido e nos coloca num engajamento criativo único com os objetos do mundo. Criativo e — de novo — estético. Para Bollas a forma tem tanta ou mais importância do que o conteúdo. Para além do leite, o bebê, ao ser amamentado, sorve uma estética, uma processualidade; experiencia a mãe como um processo transformativo, não como um objeto. A decantação dessa processualidade (que une o idioma do bebê à recepção e transformação maternas) gera algo conhecido, mas que não pode ainda ser pensado. É o conhecido não pensado bollasiano, estrutura fundante do self e talvez da obra mesma de Bollas.
A processualidade da relação com a mãe é a base da emergência do fingerprint, do idioma pessoal, do self verdadeiro — desse ponto misterioso que nos constitui. “Para alcançar a confiança básica”, escreve Sarah, “o bebê precisa sentir não só que seus impulsos instintivos são contidos, mas também que seu idioma, sua subjetividade única, é percebida, reconhecida e bem-vinda” (p. 41). Recepcionando e celebrando as produções idiomáticas do bebê, a mãe é percebida como um processo positivo de transformação do bebê, um objeto transformacional, outro conceito bollasiano de que nos lembra Sarah. Adultos, procuramos no mundo outros objetos transformacionais, inclusive no analista.
Sendo bem recepcionado nessa fase, o bebê terá uma percepção positiva de seu idioma e seu self ganhará confiança; sua comunicação inconsciente consigo mesmo, sua intuitividade e criatividade terão liberdade para vasculhar o mundo durante a vida toda em busca de objetos com os quais e através dos quais possa se desdobrar. A análise pode ser uma reedição desse processo transformacional.
Sendo bem recepcionado nessa fase, o bebê terá uma percepção positiva de seu idioma e seu self ganhará confiança; sua comunicação inconsciente consigo mesmo, sua intuitividade e criatividade terão liberdade para vasculhar o mundo durante a vida toda em busca de objetos com os quais e através dos quais possa se desdobrar. A análise pode ser uma reedição desse processo transformacional.
Grande apreciador da arte, Bollas descolará de outros grandes autores no que tange à importância dos objetos no sentido literal, objetos físicos. Nettleton nos lembra de que, diferentemente de Melanie Klein, para quem os objetos eram primordialmente internos (p. 71), Bollas radicaliza a ideia de que as percepções do mundo objetal sejam fundamentais para a formação e funcionamento da mente. Partindo do conceito de idioma pessoal, que vasculha o mundo à procura de objetos com os quais possa se identificar e se engatar Sarah nos lembra como Bollas atribui importância aos objetos do mundo pela sua integridade e características intrínsecas. A inteligência vital do self busca objetos cuja estrutura lhe permita desdobramento (ao invés de ser apenas passivamente atingido por restos diurnos).
Nettleton destaca como em “The Evocative Object World” (2009) ele conta como se deleita com visitas a supermercados e lojas de departamentos. “Cada seção da loja, cada parte de tal seção cada unidade do espaço visual, contém objetos evocativos. À medida que os vemos, seus designs suscitam relações dentro de nós. […] Quanto ao registro inconsciente de tais objetos, só podemos supor que, assim como uma loja agrupa objetos similares em certas unidades, nossa mente faz a mesma coisa, com a exceção notória de que adicionamos significado pessoal a todos e cada uma das coisas que vemos” (Bollas, 2009, p.80). Não por acaso a seleção de objetos é tão importante, haja vista a valorização dos objetos geracionais, das identificações perceptivas. Em Bollas tudo é plural (clinica plural, mente povoada, self infinito, indeterminado); completa o resumo de seu pensamento a valorizacao dos objetos do mundo.
Nettleton nos ajuda a entender que, para Bollas, somos um compósito, uma assemblage de nós mesmos; vivemos o tempo todo com o inconsciente, único e idiomático, procurando no mundo objetos que já somos e não sabemos que somos. A intuição e a criatividade são para ele um processo intra e tanspsíquico, que se dá o tempo todo, uma busca imparável do self em nos dizer o que tem a ver com nós mesmos, quem somos.
Com o livro de Nettleton podemos navegar melhor nessa belíssima – talvez o melhor elogio seria: idiomática — metapsicologia com vistas à estética de nós mesmos.
Com o livro de Nettleton podemos navegar melhor nessa belíssima – talvez o melhor elogio seria: idiomática — metapsicologia com vistas à estética de nós mesmos.
Após a leitura é, pra mim, impossível não lembrar do artista brasileiro Tunga, que disse que “a gente é uma manada da gente mesmo”*. Recusando uma obra em fases, ou seja, falando sempre de uma e da mesma coisa por sua extensa carreira, Tunga descrevia da seguinte maneira seu processo criativo em sua oficina, que ele chama de espaço psicoativo: “Estou sempre tentando aprender, estar em torno do que eu evoco, do que faço vir. Acho que essa conjunção — estar presente frente a alguma coisa e trazer alguma coisa que não está para colocar junto é um processo de criação. Portanto, tudo o que está aqui pode vir a ser trabalho ou pode já ser o trabalho. Te conto uma história: essa pecinha que você está vendo aqui tem uns nove anos. Ela esteve ao meu lado, desconfigurada, por mais ou menos uns quatro, cinco anos, sem eu perceber que ela era uma obra de arte. Era só um pedaço de âmbar com um pedaço de cristal transparente que estava colocado ali porque achei que tivesse alguma coisa em comum. Num certo dia olhei e falei: “Nossa, já está pronto o trabalho”. Há anos que estou convivendo, e o que estava procurando estava do meu lado.”
Publicado originalmente em Jornal de Psicanálise - Instituto de Psicanálise "Durval Marcondes", Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Vol. 53, dezembro 2019, n.97.
REFERÊNCIAS
*As citações podem ser encontradas em entrevista à revista “Vice” em https://www.vice.com/pt_br/article/8q4av5/tunga-v2n10
*As citações podem ser encontradas em entrevista à revista “Vice” em https://www.vice.com/pt_br/article/8q4av5/tunga-v2n10
FREUD, S (1919). O Inquietante. In S. Freud, Obras Completas (P.C. Souza, Trad., Vol 14, pp. 328). São Paulo: Cia das Letras. (Trabalho original publicado em 1919)
BOLLAS, C (2009). The Evocative Object World. Routhledge: Londres