Os pedaços que perdemos pelo caminho
Há que se pensar sobre nós, os ocidentais. É curioso que seja esse o pensamento residual da leitura deste livro, que versa, a princípio, sobre o pensamento do Oriente. Acontece que desde o início a tessitura idiossincrática sobre a China proposta por Bollas vai dando uma sensação de que algo falta à mente ocidental, de que fomos perdendo pedaços pelo caminho civilizatório.
Para Bollas, a psicanálise pode ajudar a pensar sobre essa falha, essa fenda na civilização ocidental (para emprestar o nome do nono capítulo deste livro). Ele começa com um mergulho no material por excelência da psicanálise, a palavra, mais especificamente nas diferenças entre as línguas orientais e ocidentais. Para além das diferenças técnicas, ele foca no próprio conceito do que significa um idioma para cada uma dessas metades do planeta. Os ocidentais primam pela linguagem objetiva; falar é igual a comunicar de modo preciso uma ideia. Portanto, estabelecemos nossas relações sob a égide da ordem paterna verbal. Já as línguas orientais são baseadas em caracteres, desenhos que comunicam uma imagem aberta à interpretação, dependente do contexto e da relação entre os falantes. No Oriente, pensa-se e comunica-se através da ordem materna pré-verbal. Nenhum caractere, como nenhum trigrama ou hexagrama do I Ching significa uma única coisa. Nós falamos em prosa, redigimos contratos, os orientais falam, escrevem e pensam em poesia.
Partindo da poesia e de seu vasto repertório em literatura, Bollas vai mostrando como essas maneiras diferentes de pensar criaram caráteres, modelos diferentes de vida. Para os ocidentais, Homero: a jornada do herói individual que sai pelo mundo fazendo descobertas e desdobrando seu self; para os orientais, personagens comuns mergulhados poeticamente em imagens poderosas e singelas: um cão latindo, uma bicicleta, uma montanha... A fala e a escrita têm assim uma relação dialética com o estabelecimento da realidade e com as estruturas internas que fazem essa leitura. Orientais e ocidentais vivem em mundos diferentes: eles no mundo da ordem materna, sensorial, profundamente conectados ao ambiente imediatamente perceptível; os ocidentais no mundo da ordem paterna, preto-no-branco (ou seria preto e branco?), mundo no qual as regras representam entraves ao self que quer desbravar o mundo.
Mas a busca deste livro não é pelos muros, e sim pelas pontes. As diferenças entre as maneiras oriental e ocidental de pensar tendem a ser mais episódicas do que naturais ou intrínsecas. Afinal, o Ocidente também é prolífico em poesia e o Oriente tem seus épicos de personagens heroicos. Não é que faltasse aos ocidentais e orientais, respectivamente, a capacidade de pensar poeticamente ou a objetividade narrativa, mas sim que essas partes se desenvolveram de modo desigual nessas duas partes do mundo.
É aqui que, curiosamente, a psicanálise aparece como uma inusitada ponte entre esses dois mundos. Por mais objetivo que o discurso ocidental seja, o que um analista pede a um paciente dentro do setting é exatamente o oposto dessa maneira de falar; mais ainda, o que o analista ouve é exatamente o que não foi falado, o entre das palavras do analisando. Ocidental pelo seu nascimento, a psicanálise atentou desde o início a essa zona cinza do discurso, ao entre, ao inconsciente.
A linguagem psicanalítica busca ouvir com ouvidos orientais o discurso ocidental. Não é o sonho exatamente um conjunto de imagens traduzidas em palavras, palavras estas que distorcem a experiência do sonhar¹ e o conteúdo latente deste?
A tese de Bollas é que mesmo edípica e centrada no discurso falado, a psicanálise nasceu tingida da ordem materna pré-verbal. A invenção do setting por Freud (que Bollas chama de momento freudiano), com o analisando deitado (tendo o analista atrás dele) associando livremente é a recriação desavisada do mundo da ordem materna (ou, como dizia Khan², a recriação do estado intrapsíquico do sonhador, o que é similar).
A psicanálise de Winnicott e Khan propunha uma visão radical desses estágios iniciais pré-verbais, baseando-se num profundo estudo da relação mãe-bebê e apostando numa terapêutica apoiada nessa maneira de se comunicar. A experiência do setting ganhava importância em detrimento da interpretação; esta podia atrapalhar um momento de descanso/ não integração³ do paciente, ou seja, uma experiência boa do setting e da relação ambiental. Bollas lembra que Winnicott ordenava a seus pacientes que ficassem calados; e que Khan interpretava em versos falados em persa. Sempre dividido entre seu self ocidental e oriental (mesmo não sendo o oriente de que se trata aqui), Masud Khan escreveu: “A sensibilidade oriental é, ao mesmo tempo, ‘pública’ e também escondida e privada. A mídia linguística inglesa não pode transmitir experiências tanto estrangeiras quanto incognoscíveis a ela”⁴. O que Bollas apresenta aqui é uma leitura profundamente digerida e de insider da prática desses dois analistas, que consideravam a mídia linguística mais como entrave do que benéfica para o tratamento psicanalítico.
Por mais que a prática desses analistas fosse experimental e se afastasse do que é a técnica clássica da psicanálise, é inegável que, mesmo inadvertidamente, eles enxergaram um ponto de união entre as partes oriental e ocidental da mente. Afinal, para que o self individual, interno, pudesse aparecer era necessária a provisão de um externo, de um ambiente facilitador. O self verdadeiro só existe na sua experiência no mundo.
Conforme vamos caminhando com este livro, a impressão de que precisamos lidar com dois elementos inconciliáveis vai se esvaindo. As singularidades do self e as necessidades do coletivo não precisam existir apenas em mundos apartados. A luz que Bollas nos traz é que nós ocidentais baseamos a transcendência do self individual e heroico numa alucinação negativa da realidade do grupo. É esse funcionamento psicótico do coletivo que precisa entrar em questão.
Num trabalho mais recente, Meaning and Melancholia (2018), nosso autor coloca os dois pés na política dos grupos; escreve num mundo já sob a sombra do trumpismo nos EUA (e, diríamos nós, do bolsonarismo no Brasil) e explora como os limites da democracia explicitados pelos fenômenos políticos de extrema-direita são um reflexo da pobreza da narrativa do mundo e de um ensimesmamento do processo psíquico que se apoia sobre uma operacionalização do mundo. Para Bollas, a psicanálise pode oferecer léxico para explicar o momento pelo qual passamos/passávamos⁵.
Vivemos um momento em que há um desinvestimento afetivo nas instituições da Kultur; o Fim da História não só não aconteceu como o que se seguiu foi a Era da Perplexidade (parte do subtítulo de Meaning and Melancholia). Precisamos pensar nos grupos e o pensamento da China – região mais povoada do mundo em todas as épocas – pode nos oferecer alguns caminhos. Ainda, a psicanálise pode nos oferecer um instrumento para esse pensamento. Mezan⁶ localiza a investigação do patrimônio cultural coletivo como uma das três fontes da psicanálise (junto à autoanálise de Freud e o trabalho clínico) e indica como questão fechada que Totem e Tabu era o livro preferido de Freud. E se a psicanálise partisse do grupo e não do indivíduo?, pergunta-se Bollas no capítulo 9. Bom, talvez ela tenha partido...
O que intoxica hoje nosso coletivo não é mais o pai sociopata da figura do ditador, mas sim a horda de apoiadores daqueles que se colocam acima do bem, do mal e das instituições. É impressionante que este livro tenha sido escrito antes de Trump, de Bolsonaro e da invasão do Capitólio em Washington, em 6 de janeiro de 2021. Se o conflito interno entre as instâncias da mente tem como operador o recalque neurótico, os grupos – Bollas lembra de Bion – operam a partir de defesas psicóticas sobre a própria destrutividade. Para este livro, o conflito não é apenas interno, mas também do interno com o coletivo.
Com sua consideração inerente ao coletivo, o pensamento oriental pode adicionar novos e valiosos ingredientes a uma saída para o self individual que possa ser harmônica com o todo. Bollas esquiva-se da moralidade implícita do confucionismo para tentar destilar de Confúcio uma teoria psicológica que não caia no lugar fácil do apontar de dedos para o maoísmo. A nossa democracia, afinal, ganha cada vez mais a cara de uma falsa resposta simples para as necessidades do self e do mundo.
Se o Édipo é a primeira configuração de grupo do sujeito, logo um grupo maior aparece – a sociedade –, deixando o pai em minoria. A saída do Édipo não seria tanto a submissão à lei do pai, mas sim o viver em harmonia com as leis coletivas da sociedade, coconstruídas por todos, arrisco eu, inclusive por entes não humanos. Nada mais difícil de se imaginar no atual momento em que a regulação do mundo é dominada por empresas privadas patrocinando o fomento de “empreendedores de si mesmos”.
Bollas nos faz pensar com novos coloridos no self individual exercendo-se no mundo a partir do momento em que o coletivo passa a ser um ente com o qual é preciso negociar. Já na Introdução, Bollas nos oferece a bela imagem de Haudricourt, que compara a mentalidade oriental à de um horticultor. Para este, as condições ótimas são as já dadas pela natureza.
NOTAS
¹ “The dream experience”, ou a experiência em si do sonhar, como chama Masud Khan em “The Use and Abuse of Dream in Psychic Experience” (1972).
² “Dream Psychology and the Evolution of the Psycho-Analytical Situation”. In: Kahn (1974/1996), p. 29.
³ Para Winnicott o estado de não-integração (ao contrário do de desintegração) é um estado de descanso, de “relaxamento próprio de quem se sente bem sustentado” (Dias, 2003), a partir do qual – e apenas a partir do qual – pode emergir a experiência de integração.
⁴ Em seu Workbook (1979) apud Hopkins (2006).
⁵ Para mais sobre esse livro, ainda inédito em português, remeto o leitor a meu artigo “Signifi- cado e Melancolia – A Poesia da Existência” em Jornal de Psicanálise – Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes”, SBP-SP, v. 52, n. 96, junho de 2019.
⁶ Mezan, 1985, cap. 2.1.
REFERÊNCIAS
Bollas, C. (2018). Meaning and Melancholia – Life in the Age of Bewilderment. Londres: Routledge.
Dias, E. O. (2003) A teoria do amadurecimento em Winnicott. São Paulo: Escuta.
Hopkins, L. (2006) False Self – The Life of Masud Khan. Londres: Karnac.
Khan, M. (1964/1996) The Privacy of the Self. Londres: Karnac.
_______. (1972) The Use and Abuse of Dream in Psychic Experience. In: Flan- ders, S. (1993/2005) The Dream Discourse Today. Londres: Routledge.
Mezan, R. (1985) Freud, pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense.
Santos, L. F. (2019) Significado e Melancolia – A Poesia da Existência. Jornal de Psicanálise – Instituto de Psicanálise “Durval Marcondes”, SBP-SP, v. 52, n. 96, junho de 2019.