RESENHA
As Virgens Suicidas (1999)
As Virgens Suicidas (1999)
“Nenhuma das minhas filhas teve falta de nenhum amor. Houve muito amor em nossa casa. Eu nunca entendi o porquê.” São essas as únicas três frases que a Sra. Lisbon (Katleeen Turner) produz ao final de As virgens suicidas, depois de suas cinco filhas terem se suicidado, quatro delas coletivamente. São frases de uma simplicidade quase desconcertante para nós, espectadores que acompanhamos o sofrimento das irmãs Lisbon por todo o filme e nos vemos obrigados a, de alguma maneira, concordar com a mãe: nunca faltou amor. O desconcerto talvez venha da pergunta inevitável que se segue em nossas cabeças: se não faltou amor, então faltou o quê?
As virgens suicidas é o primeiro longa-metragem de Sofia Coppola, aclamado em sua estreia no festival de Cannes em 1999. É baseado no livro de mesmo nome escrito por Jeffrey Eugenides, que fascinou Sofia durante a adolescência. Os suicídios ficam claros deste o título, desde as primeiras linhas do livro, mas o que nos leva, então, a acompanhar o filme com tanto entusiasmo?
Muitas perguntas: o mistério parece ser o fio condutor de todo o filme, mistério sobre a vida, os interesses e a sexualidade das irmãs Lisbon, que captura a atenção dos narradores – um grupo de adolescentes da vizinhança que conhecia as irmãs – desde o início do filme. As virgens suicidas é visto como um clássico sobre a adolescência e seus problemas, a irrupção e repressão da sexualidade pelos pais e pela comunidade. Vamos tentar aqui pensar os problemas das cinco irmãs aquém e mais profundamente do que isso.
A irrupção da sexualidade adolescente
As irmãs Lisbon são o protótipo da feminilidade sexy do American way of life: lindas, loiras, de classe média alta, filhas do professor do colégio; dariam perfeitas cheerleaders, esse cargo erótico e submisso que é modelo nos Estados Unidos. A diretora entrecorta a todo momento closes, peles, cabelos, pés nus; o filme cheira a uma sexualidade livre adolescente, pronta para ser descoberta em todo seu mistério. Mas desde as primeiras cenas sabemos que algo vai mal: Cecilia (Hanna Hall), a Lisbon mais nova, tenta suicídio na banheira, cortando os pulsos. É hospitalizada, se recupera e agora a atenção dos pais está mobilizada para sua recuperação. Nunca faltou amor.
Eles propõem, para que ela se anime, uma pequena festa no porão da casa, com a presença dos meninos da vizinhança. Eles tomam ponche em xícaras de vidro e trocam poucas palavras. As meninas têm um comportamento animado, com um tom blasé, é verdade. O acanhamento natural dos adolescentes em tais situações ganha um clima constrangedor pela presença constante dos pais Lisbon entre eles: a festinha é de plástico. Há um breve sinal de que a alegria pode começar a tomar conta, mas tudo é interrompido por Cecilia, que se joga de seu quarto no segundo andar e cai sobre uma lança da cerca do quintal, finalmente conseguindo se suicidar.
A resposta dos Lisbons ao suicídio é – parafraseando a Sra. Lisbon – mais amor. A vigilância aumenta e também o afastamento dos meninos e da comunidade, crescendo a aura de mistério ao redor das quatro irmãs restantes.
Aparece então um galã. Ufa, um pouco de energia masculina para equilibrar tanta feminilidade: Trip Fontaine (Josh Hartnett), um bad boy ao estilo dos subúrbios estadunidenses, o terror das mães e filhas, como nos conta o narrador. As mulheres da cidade não resistiam a seus olhos apertados, óculos de sol estilo aviador e calças boca-de-sino, como mandava a moda à época. Mas ele sonhava mesmo com Lux (Kirsten Dunst), a segunda mais velha das irmãs Lisbon. Segue-se uma aproximação entre os dois, no escuro do cinema, que nos faz suspirar – e torcer – pela relação. Decidido, Trip afirma a Lux que a convidará para sair. Mas suas malandragens não funcionarão bem com o Sr. e a Sra Lisbon, então ele se adequa: passa uma noite na casa da família vendo TV e comendo salgadinhos, com a Sra. Lisbon sentada no sofá, claro, entre ele e Lux.
Ao final de mais uma tediosa cena na casa dos Lisbon – que nos lembra da festinha no porão, quando do suicídio de Cecilia – a Sra. Lisbon proclama que está ficando tarde e Lux leva Trip até a porta, com uma despedida misteriosamente fria. Ele entra no carro e suspira. Tudo parece estar perdido.
Subitamente, a porta do passageiro abre e uma boca entra e cola imediatamente na sua. É Lux. Ela senta no seu colo e eles trocam beijos ardentes enquanto ao fundo toca “Crazy on You”, da banda Heart. Tudo dura segundos, até que Lux diz que precisa voltar e some. Pegamo-nos novamente esperançosos de que a sorte das irmãs Lisbon possa mudar a partir desse súbito aparecimento de uma sexualidade mais madura. Poderia o amor de Trip separá-la do “amor” dos pais?
Como num bom filme high school americano, há um baile da escola e Trip vai no dia seguinte pedir ao Sr. Lisbon para levar Lux ao evento. No único momento de masculinidade desse pai durante todo o filme, ele leva a ideia à Sra. Lisbon e consegue convencê-la. Liderados por Trip, os meninos da escola começam a formar uma entourage para acompanhar cada uma das irmãs ao baile.
A recepção da estética da criança
Aqui podemos fazer uma pequena pausa e pensar na pergunta que nos incomoda desde o início do filme e – quem sabe – deste escrito: se não faltou amor, o que faltou para a irmãs Lisbon? São um pouco oprimidas por pais sem graça, é verdade, mas é muito difícil entrever algo tão poderoso para causar um suicídio coletivo. Penso que o caminho é pensar não no que os pais fizeram, mas no que deixaram de fazer.
De maneira clássica, a psicanálise deu muita importância ao trauma; no início das descobertas psicanalíticas, o trauma do nascimento, do desmame ou do abuso ocupava o centro das especulações de diversos autores (além de Freud, Ferenczi e Hank). Freud operou um deslocamento nessa teoria do trauma, dos fatos reais e do abuso paterno para as fantasias; a fantasia e as alucinações do infans ganham então primazia e atingem um ápice com as teorias de Melanie Klein. A partir de Klein, a função da mãe seria de conter e traduzir terrores sem nome do bebê, modulando-os. Contendo os ataques projetivos, a mãe forjava a tolerância à ambivalência e a capacidade de reparação no bebê. Note-se como esse ponto de vista privilegia a capacidade de recepção da mãe à negatividade do bebê, por assim dizer.
Ora, nada nos autoriza a dizer que as irmãs Lisbon não tiveram esse tipo de receptividade de sua mãe, a Sra. Lisbon. Continuamos então com nosso grande dilema e quem pode nos oferecer um ângulo inédito sobre ele é Christopher Bollas.
Bollas não descarta a importância da recepção materna à negatividade, ao ódio, à pulsionalidade do bebê, mas abre um espaço nobre para a receptividade da positividade, do self, da produção do idioma pessoal. “Para alcançar a confiança básica, o bebê precisa sentir não só que seus impulsos instintivos – fome, paixão e agressão – são contidos, mas também que seu idioma, sua subjetividade única é percebida, reconhecida e bem-vinda”, nos explica Nettleton (2018) sobre essa visão bollasiana da recepção.
Para entender as irmãs Lisbon, precisamos procurar além das necessidades básicas clássicas do bebê: fome, frio, dor. Precisamos pensar numa má, péssima recepção de seus pais a seu idioma pessoal, à sua estética, que, em Bollas, ganha uma importância inédita.
Para piorar a situação das irmãs Lisbon, seus pais têm todas as características da doença normótica (Bollas 2015): não têm subjetividade nenhuma, não querem ser sujeito, mas sim objetos, como outros objetos do mundo. Tanto o pai como a mãe não parecem ter nenhuma conduta, por assim dizer, inadequada durante todo o filme. Sorriem sempre, são carinhosos, presentes. Mas lembremos que não estamos falando do trauma clássico ao pensarmos nas irmãs Lisbon – o que as rasga por dentro são pais de plástico, objetificados, petrificados, mineralizados em suas subjetividades e, portanto, sem nenhuma capacidade de lhes conceder recepção estética.
Experimentando a sexualidade adulta
Nosso filme continua então num tipo de alegria: as irmãs finalmente vão – e acompanhadas! – ao baile da escola. A Sra. Lisbon costura vestidos novos, mas não importava qual tecido elas escolhessem, porque a mãe esconderia pernas, peitos e, nas mais velhas, até os braços. Elas se arrumavam, felizes, mas os vestidos pareciam quatro sacos idênticos, como nos contam os narradores. Ao entrar no quarto para bater uma foto, o pai pergunta antes, de maneira operativa e que constrange a nós espectadores, se elas estão decentes, apresentáveis. É impressionante o contraste entre a vivacidade adolescente sexy e os vestidos que mais parecem camisolas de senhoras. Desajeitado, o pai não sabe absolutamente o que fazer com a sexualidade das filhas.
O baile da escola é uma espécie de devir que nunca aconteceu para as irmãs, em especial para Lux, que estava acompanhada do galã da escola. Eles dançam, bebem e se beijam escondidos sob as arquibancadas. São eleitos rei e rainha do baile e terminam caminhando no gramado do campo de futebol. Um encontro finalmente sexual e estético parece estar acontecendo para Lux. Seria Trip uma salvação para sua situação? Os dois beijam-se no gramado, o horário em que Lux deveria voltar para casa não mais importa. Os dois transam e adormecem um ao lado do outro. No carro, as outras irmãs e os meninos – nossos narradores –, tensos, esperam Lux, que nunca aparece. Todos vão para casa e Lux acorda no dia seguinte, sozinha, no gramado do campo de futebol. Trip a abandonara após a transa.
Segue-se o balde de água fria mais longo de nossas vidas, espectadores. Acompanhamos o despertar de Lux, sozinha, sua volta para casa de táxi já de manhã, a recepção desesperada dos pais – e já começamos a imaginar o terror que se seguiria.
Poucos imaginavam que o toque de recolher após o acontecido com Lux seria tão drástico, contam-nos os narradores. As meninas foram tiradas da escola e enclausuradas em casa. A Sra. Lisbon obriga Lux a destruir todos os seus discos de rock’n’roll. A menina carrega sua caixa de vinis escada abaixo e joga um por um no fogo da lareira. “Kiss! Por favor, não me obrigue a fazer isso”, implora a filha para uma mãe impiedosa. Aerosmith, tudo para a lareira. Lux é obrigada a queimar o que lhe restava de sua estética, da poesia do seu self nas letras das músicas que vão para o fogo.
A partir dai Lux parece não mais existir. Os meninos da vizinhança acompanham com um binóculo os encontros sexuais dela com diversos tipos de homens no telhado de sua casa, às escondidas. A genitalidade de Lux está presente: a sexualidade é às vezes suficiente para dar conta de uma mãe intrusiva e controladora. Mas, após esses encontros, as cenas mostram uma Lux de olhar melancólico, distante, desencarnada. A não recepção de sua estética – seus discos no fogo da lareira – foi mais cruel para as irmãs Lisbon do que os pais repressores.
São os pais normativos, sem subjetividade, sem conflitos, sem dúvidas, que esmagam os selves das irmãs Lisbon. Sem recepção às produções do self, este torna-se interrompido e o sofrimento é desencadeado.
A adolescência: meninas e meninos
Os espectadores que acompanhávamos e torcíamos pelo encontro de Lux e Trip chegamos desolados a essa parte do filme, anestesiados e forçados agora a acompanhar o dramático ocaso da história. Mas com que dúvida amarga ficamos! Absorvidos pela tragédia que se anuncia, quase não temos tempo de pensar: por que Trip, após conquistar a garota por quem estava apaixonado e transar com ela, simplesmente abandona Lux no gramado para nunca mais vê-la? Aproveitando: e os outros meninos da vizinhança, mais jovens do que Trip, por que nunca conseguiram fazer um movimento sequer de socorro firme às irmãs Lisbon? Vemos que a maturação da sexualidade era insuficiente em todos.
Bollas nos fala de dois momentos epifânicos no desenvolvimento da sexualidade: a idade de três anos e a adolescência. Ambos são períodos em que a criança e o adolescente passam a ver os pais a partir de uma nova perspectiva: sai de cena a mãe confortadora e aparece a mãe objeto sexual. Aos três anos esse processo entra numa espécie de dormência, e irrompe de maneira inexorável na adolescência, carregando as características daquele passado.
Nestes processos epifânicos (aos três anos e na adolescência), os pais são fundamentais ao suportarem as projeções da criança e do adolescente. Se assim o fizerem, Bollas nos fala de uma mudança de perspectiva a partir da qual o mundo será outro, todos os objetos do mundo ganham um novo colorido.
Ora, podemos apostar que as irmãs Lisbon não tiveram tal sorte com seus processos epifânicos. Nem Trip e nem os outros meninos. Dessubjetivado por uma má recepção dos pais e um mau encontro com Trip, o corpo de Lux vira coisa e ela transa, desencarnada, com diversos homens sobre o telhado da casa; Trip continua sendo “o terror de mães e filhas”; e os outros meninos parecem continuar excluídos do mundo da sexualidade madura, como quem chupa um pirulito sem tirar a embalagem.
Todos, portanto, excluídos do encontro com o outro, da possibilidade de criação de novos vínculos que os libertassem do romance familiar.
Uma conversa de selves: mas já não dava mais tempo
Os vinis de Lux jogados no lixo pela mãe são resgatados pelos meninos da vizinhança. Eles começam a se comunicar com elas pelo telefone, com trechos das letras dessas músicas; é uma conversa poética, uma conversa de selves. Já estamos no fim do filme e a vivacidade dessa conversa/flerte entre eles tem um tom melancólico porque sabemos que não evitará o que está para acontecer.
As conversas viram um convite das irmãs Lisbon para que os meninos venham à casa delas. Eles chegam e quem abre a porta é Lux, com uma roupa despretensiosamente descuidada e colada ao corpo. Os meninos dizem: “Estamos de carro, com o tanque cheio. Podemos levá-las aonde quiserem.” Um carro-self cheio de potência e energia para tirar as irmãs Lisbon de uma existência tanática. Seguem-se cenas de todos apertados no carro, em alta velocidade numa highway americana. Vento no cabelo, meninos e meninas abraçados, rindo. Infelizmente é uma cena que nunca aconteceu: no porão da casa, três das irmãs Lisbon já tinham se enforcado. Lux é a última a morrer, intoxicada pela fumaça do carro dos pais, ligado dentro da garagem.
O filme corta para a TV, uma reportagem sobre o suicídio coletivo. A repórter pergunta ao telespectador: “Vocês, pais, sabem onde seus filhos estão?” Seria melhor perguntar: vocês, pais, sabem quem são seus filhos?
“Nenhuma das minhas filhas teve falta de nenhum amor. Houve muito amor em nossa casa. Eu nunca entendi o porquê.” É o que declara a Sra. Lisbon. O casal arrumou uma saída discreta do bairro. Venderam a casa e nunca mais apareceram.
Por nunca terem sido conhecidas por seus pais, as irmãs Lisbon agora precisam ser esquecidas pelos meninos da comunidade, que foram chamados para ser testemunhas oculares de seus selves suicidados. Selves inicialmente enigmáticos, pulsantes, idiomáticos, mas que não resistiram à cegueira normótica dos pais, a uma falta de recepção absoluta, a parceiros presos a uma sexualidade em que o outro ainda não tinha chegado. É a história de cinco selves que, não podendo ser, preferiram a morte.
REFERÊNCIAS
BOLLAS, Christopher. Hysteria. Tradução de Monica Seincman. São Paulo: Escuta, 2000.